segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Aonde vais, Igreja? Leitura das novas Diretrizes Gerais da CNBB‏

Aonde vais, Igreja? Leitura das novas Diretrizes Gerais da CNBBPaulo Suess
Missiólogo e assessor teológico do Cimi
Adital
No início da Via Appia Antica, na saída de Roma, se encontra a pequena Igreja Quo vadis, Domine ("Aonde vais, Senhor?”). Ela lembra a lenda de uma fuga e a história de uma perseguição. Segundo a lenda, o apóstolo Pedro teria fugido das perseguições do imperador Nero (54-68) e se encontrou, no perímetro da Quo-vadis-Domine, com Jesus ressuscitado. À pergunta de Pedro "Aonde vais, Senhor?”, Jesus teria respondido "vou a Roma para ser novamente crucificado”. Neste exato momento, em que o afrouxamento do espírito de pertença à Igreja Católica aponta a diferentes razões de fuga, a CNBB procurou em suas "Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, 2011-2015” (DGAE 2011) responder à pergunta: "Aonde vais, Igreja?”
1. Do objetivo geral
Para nossa reflexão sobre caminhar histórico e direção contemporânea da Igreja no Brasil pode ser fecundo comparar o objetivo da XVII Assembleia Geral da CNBB, de abril de 1979, com os objetivos das DGAE de 2008 e de 2011. O Objetivo geral de 1979 rezava:
1979Evangelizara sociedade brasileira em transformação,
a partir da opção pelos pobres,
pela libertação integral do homem,
numa crescente participação e comunhão,
visando à construção de uma sociedade fraterna,
anunciando assim o Reino definitivo.
Se colocarmos o novo Objetivo geral das Diretrizes de 2011 ao lado do Objetivo de 2008 e compararmos ambos com o de 1979, temos uma informação "objetiva” sobre mudanças significativas e continuidades a longo e curto prazo. Nos Objetivos de 2008 e 2011, com ênfase no discipulado missionário, percebe-se a influência de novos setores e movimentos. Estes, nos últimos anos, ganharam força na Igreja Católica, influenciaram fortemente o evento de Aparecida (2007) e se sintonizaram mais com o discurso universal, genericamente romano, do que com os contextos geográficos, onde deveriam estar enraizados:



2008
2011
Evangelizar,a partir do encontro com Jesus Cristo,
como discípulos missionários,
à luz da evangélica opção preferencial pelos pobrespromovendo a dignidade da pessoa,
renovando a comunidade,
participando da construção
"para que todos tenham vidae a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Evangelizar,a partir de Jesus Cristo,
na força do Espírito Santo
como Igreja discípula, missionária e profética,
alimentada pela Palavra de Deus
e pela Eucaristia,
à luz da evangélica opção preferencial pelos pobrespara que todos tenham vida (cf. Jo 10,10)rumo ao Reino definitivo.
A continuidade verbal das DGAE está na própria evangelização, na opção pelos pobres e no anúncio do Reino de Deus e da Vida. As mudanças significativas que se percebem nos Objetivos gerais de 2011 se encontram em seu cunho nitidamente introvertido. A Igreja das Diretrizes gira em torno de si mesma e perdeu, aparentemente, o horizonte da "libertação integral do homem” (1979) e da "construção de uma sociedade justa e solidária” (2008) de outros tempos. As palavras-chave, na ordem das Diretrizes de 2011 são: evangelizar, Jesus Cristo, Espírito Santo, Igreja discípula, missionária e profética (sem respaldo significativo no próprio texto das Diretrizes), Palavra de Deus, Eucaristia, (finalmente!) a opção preferencial pelos pobres, vida e Reino.
Há uma divergência sobre o ponto de partida para a evangelização: evangelizar "a partir da opção pelos pobres” (1979) ou evangelizar "a partir de Jesus Cristo” (2011) que alguns bispos consideram uma tautologia. Evangelizar a partir da realidade social ou da revelação e doutrina? O "a partir de” pode apontar para um ponto de partida geográfico-social ("a partir do lugar dos pobres”) ou para uma fonte doutrinal ("a partir de Jesus Cristo”). Não devemos confundir "lugar” com "fonte”. Para definir o uso da fonte doutrinal, precisa-se dizer antes a partir de que lugar sociogeográfico se faz uso daquela fonte. A fonte é um instrumento a serviço da causa dos pobres. "Fonte” e "lugar” apontam para níveis diferentes. Uma solução atenuante se oferece através da aproximação de Jesus Cristo aos pobres, portanto, da "fonte” ao "lugar”, como está implícito no "julgamento das nações”, de Mt 25,31-46.
O Objetivo geral das DGAE 2011 aponta para essa discussão de fundo, que é uma discussão semântica e metodológica. Ela procura esclarecer o conceito de realidade e versa sobre a aceitação da metodologia do ver, julgar, agir e da precedência do "lugar social” ante a "fonte doutrinal”.
2. Da realidade
Na 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, em Aparecida (2007), o papa Bento XVI assumiu essa questão e tranquilizou o ambiente, dando, aparentemente, razão a gregos e a troianos. Deve-se, antes de tudo, saber que a metodologia do ver-julgar-agir não é uma invenção da Teologia da Libertação. Trata-se de uma herança da Juventude Operária Católica (JOC), da Bélgica, assumida pelo papa João XXIII, em sua Carta Encíclica Mater et Magistra, de 1961 (MM 236). Por conseguinte, Bento XVI, em Aparecida, não teve mais a possibilidade de rejeitar a metodologia do ver, julgar, agir, mas introduziu nela acréscimos significativos.
A análise da realidade, em documentos eclesiais latino-americanos, está muito ligada ao lugar da "opção preferencial pelos pobres”. No Objetivo geral das DGAE 2011, a opção preferencial pelos pobres está no último lugar possível e seu conteúdo fica aquém da proposta de Aparecida que deu um novo peso a essa opção explicando o significado do "preferencial”, nas DGAE apenas formalmente citada (69): "Que seja preferencial implica que deva atravessar todas as nossas estruturas e prioridades pastorais” (DAp 396).
A opção pelos pobres e pelos "outros” nos coloca em meio a conflitos centrais da humanidade, conflitos que exigem discernimentos e "análise da realidade”. Discernir quer dizer distinguir entre diferentes níveis dessa realidade. Nas Diretrizes de 2011, essa realidade é descrita com certo pessimismo. As "marcas de nosso tempo”, segundo as Diretrizes, são transformações profundas. Em tempos desnorteadores (20) perdemos valores, referenciais e critérios. Tudo isso produz: relativismo, fundamentalismo, laicismo militante contra a Igreja, irracionalidade midiática, amoralismo generalizado (20). Somos dominados por leis do mercado, lucro, bens materiais, hedonismo, sucesso pessoal, individualismo. As Diretrizes acrescentam ainda como "marcas de nosso tempo”: corrupção, violência, narcotráfico, emocionalismo, sentimentalismo, utilitarismo (21 e 22).
O tópico dos "sinais dos tempos”, as Diretrizes mencionam duas vezes (24, 140), sem apontar para seu conteúdo. Quais são esses sinais dos tempos? Qual é seu significado? De fato, a Igreja das Diretrizes não soube nomear os sinais do tempo de hoje. Preocupações internas dificultam a percepção daquilo que Deus nos quer dizer através do mundo. Essa incapacidade de ver Deus atuar fora da Igreja nos faz lembrar a gigantesca coragem de João XXIII que, em sua Carta Encíclica Pacem in Terris (1963), soube ler os "fenômenos [que] caracterizam a nossa época” como "sinais dos tempos”: a emancipação da classe operária, das mulheres e dos países colonizados (cf. PT 39ss), o reconhecimento crescente dos "laços comuns da natureza” que unem a humanidade (PT 126-129) e a Declaração Universal dos Direitos do Homem (PT 142ss).
Em seu Discurso Inaugural (DI) da Conferência de Aparecida, Bento XVI sublinhou a base cristológica da opção pelos pobres. Repetidas vezes o DAp cita essa parte do DI (148, 392, 405, 505). A articulação cristológica e, em sua consequência, trinitária da opção pelos pobres faz dessa opção, e de seus desdobramentos concretos, não só imperativos pastorais irrevogáveis, mas premissa da teologia latino-americana e de sua análise da realidade. Isso nos permite escutar as perguntas de Bento XVI sobre a realidade em geral, a partir da nossa realidade latino-americana e caribenha: "O que é esta `realidade´? O que é o real? São `realidade´ só os bens materiais, os problemas sociais, econômicos e políticos?” Os sistemas marxistas e capitalistas "falsificam o conceito de realidade com a amputação da realidade fundante, e por isso decisiva, que é Deus”. E o papa continua: "Só quem reconhece Deus, conhece a realidade e pode responder a ela de modo adequado e realmente humano”.
Pelo bem da verdade temos que acrescentar que não só sistemas ateístas, mas também religiões e, inclusive o cristianismo, podem responder inadequadamente aos reclamos da realidade. Em seguida temos de admitir que nessa visão da realidade se trata de uma mescla de dois níveis de realidade, de uma teológica sobreposta a uma sociológica.
Entretanto, é possível, numa teologia contextual articular os dois níveis da realidade, nos termos cristológicos de Calcedônia, sem confusão (inconfuse) e sem separação (indivise). O Cristo da fé assumiu como Jesus de Nazaré a cruz, que nos protege "da fuga para o intimismo”, como disse o papa, e de interpretações ideológicas da realidade. A análise da realidade com a premissa da opção pelos pobres, que significa "ver Deus nos rostos dos pobres”, não permite o abandono da realidade sociológica nem a sua redução aos grandes problemas econômicos, sociais e políticos. Mas, igualmente, não permite voltar a um Credo desencarnado ou a um Pai-Nosso sem pensar o "pão nosso” de toda a humanidade.
O prefixo de uma cristologia gloriosa em documentos oficiais recentes da Igreja, quase paralelo à realidade das vítimas dos sistemas e dos crucificados da história, se torna repetitivo, cansativo e distante do povo de Deus. Esse povo de Deus que, provavelmente, não se reconhece nas Diretrizes, ama Jesus e se reconhece, sobretudo, em Jesus crucificado. A Igreja precisa reaprender a falar de Jesus crucificado nos pobres. Nos DGAE 2011, a cruz aparece duas vezes (5, 69) e apenas uma vez essas Diretrizes falam do martírio (3).
3. Da estrutura
A 49ª Assembleia Geral, de 2011, considerou sumariamente "a mudança de época como maior desafio” (27). O tópico da "mudança de época” faz, no mínimo, dez anos que aparece em documentos eclesiais. Na estrutura das DGAE 2011 não somos mais confrontados com desafios do mundo, mas com cinco urgências da Igreja na ação evangelizadora, urgências que representam escolhas caseiras e reparos institucionais dos estragos que a mudança de época causa às Igrejas. Eis as cinco urgências que no IV capítulo das Diretrizes se tornam cinco "perspectivas de ação”:
(1) Igreja em estado permanente de missão;
(2) Igreja: casa de iniciação à vida cristã;
(3) Igreja: lugar de animação bíblica da vida e da pastoral;
(4) Igreja: comunidade de comunidades;
(5) Igreja a serviço da vida plena para todos.
Como a "opção preferencial pelos pobres” no Objetivo geral, também a verdadeira razão de ser da Igreja, estar "a serviço da vida plena para todos”, se encontra em último lugar nas perspectivas de ação. O quê é realmente urgente na Igreja? Urgente é o grito dos pobres, a dor dos excluídos, a cruz dos injustiçados! O resto são tarefas permanentes (estado permanente de missão, iniciação à vida cristã, animação bíblica, construção de comunidades). Com as urgências, os autores das DGAE não conseguem, como é a sua intenção, "ultrapassar uma pastoral de mera conservação ou manutenção para assumir uma pastoral decididamente missionária, numa atitude que, corajosa e profeticamente, [Aparecida] chamou de conversão pastoral” (DAp 370, DGAE 2011 n. 26).
Não podemos trocar desafios por urgências! E as Diretrizes admitem que as urgências elencadas nem sempre correspondam aos desafios reais (131). A urgência das DGAE 2011 aponta, como uma espécie de PAC (Programa de Aceleração dos Católicos) eclesial apenas para a velocidade, não para o caminho. Pela falta de recursos e agentes de pastoral nas periferias das nossas grandes cidades, os ministros que restam se tornaram, muitas vezes, missionários e missionárias de Fórmula 1, sobrecarregados com tarefas e distâncias. Estão "na onda” da aceleração exigida pelo mercado e agora pelas DGAE.
No conjunto das Diretrizes não falta uma cesta básica de desafios. O que falta é a devida priorização. Todos os desafios são subordinados à "mudança de época como o maior desafio a ser atualmente enfrentado” (27, cf. 26): educação na fé (40, 98), ambientes virtuais (59), mundo plural, globalizado, urbanizado e individualista (60), diversificação dos ministérios leigos, a vida dos abandonados, excluídos, ignorados em sua miséria e dor (66). As Diretrizes elencam ainda outros desafios: juventude (81), ecumenismo (82), diálogo interreligioso (83), missão ad gentes (84), testemunho de Cristo e dos valores do Reino (91), aproximação entre fé e razão (117).
Como já mencionamos, as urgências, que representam as partes centrais das DGAE (capítulo III e IV), são precedidas por uma reflexão cristológica, como ponto de partida (capítulo I), e por "Marcas de nosso tempo” (capítulo II). O capítulo V propõe a operacionalização dessas urgências nas Igrejas particulares através de "um processo de planejamento”. Para este propõe sete passos metodológicos, que as próprias DGAE nem sempre seguem.
Aos sete passos metodológicos correspondem sete perguntas: Onde estamos (1)? Onde precisamos estar (2)? Quais são as urgências pastorais (3)? O que queremos alcançar (4)? Como vamos agir (5)? O que vamos fazer (6)? Como renovar as estruturas (7)? Infelizmente, as perguntas bem feitas não podem romper o círculo de giz eclesiocêntrico previamente estabelecido.
4. Nas entrelinhas
O que não pode ser dito na praça pública, atravessa as Diretrizes nas entrelinhas. Queria destacar algumas dessas palavras quase clandestinas que permitem uma leitura mais profunda do que funcional das DGAE. Na esteira de Aparecida, as DGAE desenvolvem um guia de densa espiritualidade para o discípulo missionário universal em torno dos substantivos "alteridade” e "gratuidade”. Aparecida nos lembrou que "na generosidade dos missionários se manifesta a generosidade de Deus, na gratuidade dos apóstolos aparece a gratuidade do Evangelho” (DAp 31). As DGAE 2011 continuam: "As atitudes de alteridade e gratuidade marcam a vida do discípulo missionário de todos os tempos. Alteridade se refere ao outro, ao próximo, àquele que, em Jesus Cristo, é meu irmão ou minha irmã, mesmo estando do outro lado do planeta” (8). As DGAE, quando falam do outro como irmão e do apostolado como graça, enfatizam, em determinados enxertos, a fonte cristológica: "Gratuidade e alteridade são, portanto, modos de compreender o que há de mais decisivo em Jesus Cristo: a saída de si, rumo à humanidade [...]” (12).
Na acolhida do outro acolhemos Jesus e na acolhida de Jesus, que se fez Palavra do Pai, acolhemos o outro (cf. 50s). As diferenças nos convidam "ao respeito mútuo, ao encontro, ao diálogo, à partilha e ao intercâmbio de vida e à solidariedade” (ibd.). O intercâmbio da vida é prefigurado em Jesus e se resume nas palavras "doação”, "desprendimento” e "esvaziamento” (16). Por conseguinte, "todo relacionamento é [...] chamado a acontecer na gratuidade. À semelhança de Cristo Jesus que, saindo de si, foi ao encontro dos outros, nada esperando em troca (cf. Fl 2,5ss)” (9). O discípulo missionário "é chamado a profeticamente questionar, através de suas escolhas e atitudes, um mundo que se constrói a partir da mentalidade do lucro e do mercado” (DGAE n. 9). A gratuidade corta "a raiz mais profunda da violência, da exclusão, da exploração e de toda discórdia” (9). Ela é a "vitória sobre a ambição” (69). Num mundo dominado por lucro e mercado, por vingança e ressentimento, a acolhida gratuita do outro significa despojamento e perdão. São atitudes proféticas que fazem parte de um mundo novo, do outro mundo que é possível, do Reino de Deus no meio de nós (cf. 9s, 140).
Gratuidade e alteridade lembram o que já foi dito no documento "Evangelização e missão profética da Igreja” da 43ª Assembleia Geral, de 2005: "Evangelizar é uma ação eminentemente profética, anúncio de uma Boa-Nova portadora de esperança. A profecia será, pois, a forma mais eficaz de anunciar a Boa Nova” (Evangelização e missão, cap. 1).
Aonde vais, Igreja? Não estamos indo por aí, sem rumo. As reais urgências e os verdadeiros anseios do povo de Deus revelam-se nas entrelinhas das DGAE: a Igreja profética, o reconhecimento da alteridade, a gratuidade da missão e a fidelidade a Jesus Cristo crucificado e ressuscitado no meio do povo. Aí se encontra a possibilidade de a Igreja no Brasil interromper a fuga e ser, o que deve ser: "expressão da encarnação do Reino de Deus no hoje de nossa história” (141).
Paulo Suess
Missiólogo e assessor teológico do Cimi
Adital

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