Luta feminista e gênero
por CEBI/Monika Ottermann*
Há alguns anos, fui convidada a assessorar um encontro nacional de diáconos e diáconas da IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil) sobre questões de gênero e de leitura bíblica feminista. Muita gente viajava no ônibus fretado, vindo do sul para o local do encontro, no Espírito Santo, e, em São Paulo, eu me juntei à turma. Havia homens, mulheres e crianças.
Em uma das paradas, uma menininha foi atraída pelos brinquedos expostos numa loja do posto. Voltou ao ônibus feliz e orgulhosa com o presentinho que ganhou: um carro de brinquedo. Uma senhora que estava no ônibus disse-lhe: "Menina, por que você não pediu uma boneca? Tinha tantas e tão bonitas!". E o pai respondeu em lugar da menina consternada: "Você acha que um dia ela não vai tirar carteira de motorista?!". Foi uma observação muito apropriada, se levarmos em conta que no mundo ainda existem três a quatro países que proíbem mulheres de fazer carteira de motorista...
Quando li as reflexões de Scheila, no livro Costurando saberes, lembrei, na hora, da viagem, da menina e de seu brinquedo e do que o pai respondeu. As reflexões trabalham com grande competência e com muito jeito os complexos problemas ligados aos saberes e às experiências de mulheres. Problemas presentes em quase todos os aspectos dos sistemas, das sociedades e das comunidades em que vivemos. São problemas que nos influenciam, mas que, ao mesmo tempo, podem ser mudados por nós, homens e mulheres, gente pequena e grande, sem que tracemos fronteiras entre homem e mulher, entre gente (in)formada e não (in)formada. Pois a construção do nosso ser homem e ser mulher e a nossa avaliação das construções de pessoas em nossa volta não são fixas e naturais ou dadas por Deus. A expressão "fomos criadas assim" não pode ser aceita pelas mulheres.
O que deve estar claro é que, como mulheres e homens, fomos socializadas, criadas, educadas, formadas, influenciadas... "assim ou assado", e que temos a liberdade e capacidade - preciosa dádiva do divino - de nos posicionar diante de tudo isso. O presente ensaio de Scheila é um feliz estímulo no sentido de fazermos maior uso da nossa capacidade e liberdade para transformar mentalidades e atitudes em prol de libertação e respeito às diferenças.
A autora articula com muito jeito dois conceitos que nem sempre andam de mãos dadas: vertentes da luta feminista e reflexões sobre o conceito de gênero. É essa articulação que faz com que gênero seja aqui não simplesmente outra palavra para mulher, sem consciência crítica e sem vontade e critérios de lutar por mudanças. E faz com que feminismo não seja algo restrito aos interesses e desejos de algumas mulheres meio "radicais", que não permitem inclusão de outros grupos desprivilegiados e de homens em geral.
Por isso, o panorama que Scheila nos oferece, de saberes e experiências de mulheres no âmbito do cristianismo (por mais sumário que seja), não é um mero elenco "neutro" (algo que, aliás, não existe: sempre há perspectivas e interesses, nem sempre revelados e, muito menos, com tanta coerência como aqui). É uma preciosa colcha de retalhos, cujo desenho tem como centro os alcances e desejos de nós mulheres no Brasil de hoje (para muito além da IECLB!) e cujo fio de costura é uma profunda fé na igualdade em direitos e dignidade de todos os seres humanos.
Scheila, obrigada por esta contribuição para uma caminhada que é o nosso compromisso e um dos maiores desafios no mundo de hoje!
*Biblista e teóloga feminista, doutora em Ciências da Religião, assessora do CEBI e sócia da Nhanduti Editora.
(Texto da apresentação do livro de Scheila dos Santos Dreher, Costurando Saberes e Experiências de Mulheres - uma perspectiva histórico-teológica)
Nenhum comentário:
Postar um comentário